domingo, 8 de outubro de 2017

A "Tia" de Guilherme Uzeda: A Humanidade do Riso

por Carmem Toledo

Em cartaz com a peça "A Tia é um Show!", o ator Guilherme Uzeda prova que fazer rir vai além de um simples momento de relaxamento e diversão. Sua personagem, a Tia, é uma senhora um tanto atrapalhada, um pouco ingênua e, em outros momentos, picante - mas de uma malícia que, sem cair na vulgaridade, produz um riso cúmplice, fruto de nossa identificação com o tipo que se aproxima muito dos traços de personalidade que costumamos encontrar no cotidiano.
Como já escrevi em uma recente postagem aqui no blog, grande parte do que vemos na comédia ocidental se deve à Commedia Dell'Arte. Duas de suas principais características são o improviso e os personagens caricaturados - dois traços bastante presentes na peça de Guilherme Uzeda: a Tia (que pode ser associada a um clown extremamente bem construído, ainda que não haja o nariz vermelho como elemento identitário) brinca com o cotidiano, usando a seu favor as situações mais inusitadas que possam se apresentar durante o espetáculo.
Esta senhora atrapalhada e amigável desperta a simpatia de qualquer pessoa que a conheça. É como se estivéssemos diante de um parente, uma avó, uma verdadeira tia acolhedora, daquelas que "estragam" os sobrinhos - segundo a mais deliciosa concepção do verbo "estragar": aquela que mima, que deixa ficar acordado até tarde, que permite que se coma mais um doce; que demonstra interesse em nós e no que fazemos; que acolhe com os braços e com o olhar (no caso da Tia de Guilherme Uzeda, um olhar carregado de sombra exagerada e alegremente colorida). Estou falando daquela Tia que todos querem ter e do riso leve e despretencioso que nos liga à personagem, identificando o que há de mais real nela - e em nós mesmos. É por isso que rimos: porque existe uma familiaridade, uma relação previamente estabelecida entre os indivíduos, tornando-os membros de uma sociedade em que o riso, ao mesmo tempo que é produzido pela cumplicidade entre os seres pensantes, governa suas relações.

O riso é um fenômeno essencialmente humano, já que o único animal que ri (dos outros e de si mesmo) é o homem. Isso já foi observado pelo filósofo francês Henri Bergson, que também analisa o riso como uma operação social e puramente racional, ou seja, uma expressão da compreensão - bem como do julgamento. Assim, podemos dizer que o riso é uma reação que evoca nossa condição de seres sociais, conscientes de nossas relações e de pertencimento a um grupo: quando rimos de nós mesmos, expressamos o efeito desse vínculo, já que a maneira como nos vemos revela nossa afinidade em relação aos demais indivíduos. Trata-se, portanto, de um comportamento que pressupõe a convivência, a familiaridade e a comparação - o que leva à função coercitiva atribuída ao riso pelo filósofo, que afirma que aquele que ri pretende corrigir determinados atos considerados "excêntricos" no grupo a que pertence.
Sabemos que a vida exige maleabilidade, ou seja, que nos adaptemos às diversas situações, que saibamos lidar com as adversidades. A rigidez é o oposto dessa flexibilidade, uma vez que enfraquece o ser vivo e sua eficácia em sociedade: isso faz com que o rigor, a mecanicidade, o automatismo e a sisudez sejam os alvos do riso. Ao mesmo tempo, a exigência de que o outro também se ajuste à sociedade faz com que estabeleçamos e nos submetamos a regras rígidas no interior deste grupo - e isso também é uma espécie de adaptação e de aquisição de habilidades, afinal, passamos a nos submeter a regras como se não estivéssemos nos sujeitando a elas. Assim, o medo do ridículo passa a nos guiar em sociedade, formando-nos como seres interdependentes.

A Tia de Guilherme Uzeda não teme ser patética. Tentando entender certas "modernidades", ela demora a se adaptar a itens que fazem parte de nosso cotidiano: sua máquina fotográfica é de 36 poses; ela não sai de casa sem a bolsa e o guarda-chuva; sua tevê ainda é de válvula e ela chama os canais pelos números - 4 corresponde ao SBT, 5 à Globo, 11 à Gazeta e assim por diante. Mesmo assim, ela arrisca, tenta fazer parte do grupo, ainda que dê uns "foras" por não estar muito bem informada sobre certos assuntos. É isso que nos leva a rir dela. Em seu esforço pela adaptação, a Tia revela a sutileza dos conflitos entre diferentes gerações - conflitos que surgem justamente a partir da dificuldade de se abandonar a inflexibilidade (que, aliás, é característica não apenas de quem nasceu há mais tempo, mas também dos que estão em desenvolvimento e, em sua sede de adequação, excluem aquele que não se encaixa no grupo).
Entretanto, longe desse riso ser maldoso, ele desvela a identificação, a cumplicidade de quem também está inserido nesse contexto. Trata-se de um assunto bastante complexo. O próprio Bergson assume a dificuldade de tratar do riso e do risível. O filósofo, longe de criar uma definição, analisa o comportamento, produzindo uma teoria que mais se aproxima de uma problemática do que envolve a questão por completo. A quem quiser compreender melhor o pensamento de Bergson, recomendo a leitura de "O Riso - Ensaio sobre a significação do cômico". Além do texto do filósofo, sugiro o artigo de Jorge Piaia Mendonça Júnior - "O Riso e a Ordem Social: Ensaio sobre a teoria de Henri Bergson sobre o riso e o cômico" - que ajuda bastante a esclarecer a visão deste pensador francês sobre o tema.

O jornalista e cientista político brasileiro Bernardo Kucinski também aborda a questão em seu livro "Jornalistas e Revolucionários: Nos tempos da imprensa alternativa". Os periódicos de natureza política que circulavam durante a ditadura militar no Brasil apresentavam um humor que revelava as relações entre a imprensa, a sociedade e o Estado de forma perspicaz, com a sutileza necessária em tempos em que a linguagem era uma faca de dois gumes (e, na verdade, assim segue, mas tendo por censores outros grupos e outras formas de coerção). "O Pasquim", por exemplo, é um ícone da arte de fazer rir através da letra e do traço. Ziraldo, Millôr Fernandes, Henfil, Jaguar e tantos outros que fizeram parte de sua história são nomes que até hoje figuram entre os gênios do humor - e é importante ressaltar que Millôr escreveu e traduziu várias peças teatrais, o que prova que as artes conversam entre si e o humor costura todas elas, comunicando algo e refletindo a sociedade.

Como se vê, o riso é uma dádiva - um dom que, dado por um Deus ou por nós mesmos, seres pensantes, lembra-nos a todo instante de nossa humanidade e do grupo em que estamos inseridos, servindo como um instrumento de crítica e - por que não dizer? - de poder: afinal, quem ri exerce sua potência através da capacidade crítica. Guilherme Uzeda provoca esse riso com maestria, por meio de uma personagem que, com sua ingenuidade, conquista o público, levando-o a pensar pela cabeça de alguém que, já tendo vivido, ainda tenta entender o mundo e encontra surpresa e alegria em tudo que a cerca.

Carmem Toledo
http://culturofagicamente.blogspot.com.br
http://facebook.com/culturofagia
http://instagram.com/carmem.toledo



Saibam mais sobre o ator Guilherme Uzeda e sua personagem, a Tia:

Página oficial de Guilherme Uzeda no Facebook: https://www.facebook.com/Guilherme-Uzeda-1074737915950091/
Página oficial da Tia no Facebook - "Garrando Amizade": https://www.facebook.com/garrandoamizade/
Fanpage "ABACAT - Associação Bacanuda de Admiradores Convictos que Amam a Tia" (administrada por Carmem Toledo): https://www.facebook.com/somostodosabacat


O ator Guilherme Uzeda como sua personagem, Tia.


Autoria:

"Culturofagia" (culturofagicamente.blogspot.com) é de autoria de Carmem Toledo. Está proibida a reprodução total ou parcial do conteúdo aqui publicado, inclusive dos disponibilizados através de links aqui presentes. A mesma observação se estende a todos os blogs e páginas da autora ("Voz Neurodiversa", "O Caminhante Solitário", "Sophia... Ieri, Oggi, Domani") e toda e qualquer criação, seja em forma de texto ou ilustração, por ela assinada.

Culturofagia

Voz Neurodiversa

O Caminhante Solitário

Sophia... Ieri, Oggi, Domani